Thursday, April 27, 2006

Telê, futebol e música


Publicado no Diário do Povo, em 25 de abril de 2006

Hugo Picado é um costarriquenho que faz doutorado em Salamanca, Espanha. Sabe tudo de futebol, sobretudo do futebol brasileiro. Repete as escalações de 58 e 62 sem titubear. E tem especial devoção por Pelé e também pela seleção de 1982 - aquela que encantou o mundo com um futebol mágico e frustrou a todos com uma eliminação tão inesperada quanto injusta. Sexta-feira dei a notícia a Hugo: Telê Santana morreu. Tomou um susto como se fosse um amigo próximo.
A seleção de Telê jogada como uma orquestra. Telê fazia do futebol um concerto. E por isso Hugo tem tanto carinho por aquela equipe de Sócrates, Falcão, Zico e Júnior. Uma seleção que (como diz meu amigo de Costa Rica) só tinha duas fraquezas: o goleiro Waldir Perez e o dianteiro Serginho - este aliás, teve protagonismo no desastre espanhol pelo menos por dois gols perdidos de forma escandalosa. Apesar de Waldir Perez e Serginho, e apesar da desclassificação, aquela seleção mágica encantou e ficou na história das copas como algumas das grandes injustiças, junto à Hungria de 54 e à Holanda de 74.
É verdade, a orquestra vestida de amarelo desafinou contra a Itália (especialmente o tocador de Tuba, Serginho). Mas os concertos que ofereceu em outros jogos ainda ecoam. Graças à batuta de Mestre Telê e seus músicos extraordinários.
O futebol da seleção de 82 era o puro futebol brasileiro. O puro futebol de Telê, que construía equipes mágicas por onde passava. Está na história do futebol nacional o Atlético Mineiro dos anos 70, que Telê formou a partir de um bando de garotos, alguns lembrados até hoje pelo desconcertante talento. O maior de todos? Sem dúvida, Reinaldo, destruído em campo por becões que não tinham senão a truculência para enfrentar o brilho de seu toque. Aquela equipe de Telê revelou também Toninho Cerezo, Paulo Isidoro e outros.
Além de colocar em campo o legítimo futebol brasileiro, Telê tinha esse outro talento: revelar novos valores. Foi ele quem acreditou no Juninho, quem lustrou Raí e ajudou o São Paulo a parir uma constelação de estrelas que depois se espalharam pelo universo futebolístico europeu e de outros continentes. Com o São Paulo igualmente mágico que formou no início dos anos 90, Telê ganhou tudo. Campeonato paulista, brasileiro, libertadores e duas Taças Interclubes. Isto é, dois campeonatos mundiais.
Da primeira conquista mundial, contra o Barcelona, lembro até hoje da reação de Cruyff, o técnico do time espanhol, após a derrota: “Há um ditado holandês que diz: se você tiver que morrer atropelado, que seja por uma Ferrari” – disse o técnico, sem procurar desculpas, apenas reconhecendo que havia sido atropelado por aquela “Ferrari” do futebol. Quase se mostrava feliz por perder não para qualquer time, mas para o São Paulo de Telê.
Sem dúvida, é deliciosa a comparação de Cruyff com uma Ferrari, relembrando que aquele time era uma máquina azeitada e poderosa. Mas prefiro mesmo ficar com as lembranças do amigo costarriquenho, que via música na seleção de 1982. Assim eram as equipes de Telê, que fazia revelar até os talentos mais ocultos em cada jogador. E Telê encantava porque fazia brotar o mais puro estilo brasileiro, aquele desde sempre gravado na identidade dos nossos estádios, no coração do torcedor: não basta ganhar; é preciso encantar. Se não é assim, pense aí qual a equipe mais lembrada? A vitoriosa de 1994 ou a derrotada de 1982? Ganhamos em 94, mas estivemos longe de mostrar o talento brasileiro, salvo dois ou três jogadores. Era uma equipe travada, que não tinha brilho. Ganhou, mas tem um lugar menor na história como marca do futebol brasileiro.
A seleção de 1982 perdeu, mas encantou. Quase garante o carimbo de pé frio ao Mestre agora morto. Felizmente o tempo pôde recolocá-lo no devido lugar, com as conquistas do São Paulo. Telê mostrou que, mesmo em tempos de futebol de resultados, o talento tem espaço e o jogo bonito pode ser praticado. Mostrou que o futebol não pode ser comparado com uma engrenagem qualquer, repetitiva e previsível, mas com uma partitura que é executada com técnica e previsibilidade, sim, mas também com arte. Muita arte.
E por isso os concertos das orquestras de Telê seguem em nossas almas. E nos corações dos amantes do belo futebol, como o do costarriquenho Hugo.

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